Como nossas preferências são formadas
De maneira geral, costumamos entender “preferência” como o reflexo de uma decisão já consolidada. Porém, pesquisas dos últimos anos mostraram um cenário bem diferente: ação, contexto e uma série de eventos sem relação direta com a escolha em si não apenas influenciam como também criam preferências.
Este tema foi tratado por diversos autores, economistas e psicólogos, desde pelo menos a década de 50. Mas foi só na segunda metade dos anos 1970 que uma nova abordagem começou a trazer à tona discussões mais profundas sobre a interferência dos chamados “fatores situacionais”.
Com isso, o processo de formação das preferências ganhou um novo impulso, deixando de lado a ideia de que a razão, por si só, é suficiente para definir uma escolha, e demonstrando empiricamente que a maneira como uma questão é apresentada pode direcionar a decisão — inclusive de formas inconsistentes ou contraditórias, como veremos a seguir.
Utilidade, razão e escolhas
A Economia usa um conceito chamado “utilidade” para indicar o quanto uma escolha é desejável. Supondo uma cesta de três produtos diferentes — pêssego, caqui e kiwi, por exemplo — minha fruta preferida (o pêssego) é a de maior utilidade; minha fruta detestada (o kiwi), a de menor.
A utilidade é uma classificação subjetiva; portanto, a mesma cesta de produtos poderá ser avaliada de forma diferente por pessoas diferentes.
De acordo com a teoria neoclássica, a utilidade representada por uma preferência visa à maximização do benefício dentre as opções disponíveis — característica predominante do famoso homo economicus. No contexto da formação das preferências, essa corrente de pensamento se mantinha indiferente a fatores exógenos, atribuindo nossas escolhas sempre (e erroneamente) a uma utilidade criada e definida na memória.
Contudo, estudos em Ciências Comportamentais já demonstraram a existência de inúmeros fatores, conscientes e inconscientes, que influenciam nossa tomada de decisão. Assim, as ações (manifestações do comportamento) não são mera consequência, mas sim a própria causa de muitas de nossas preferências.
Parece contraditório?
Em seu trabalho acadêmico, Dan Ariely e Michael Norton[1] levantaram vários casos em que este ponto pode ser observado e desenharam experimentos interessantes para testá-lo:
- diversas pessoas receberam diferentes quantias para realizar uma tarefa entediante e depois mentir a que estavam gostando de executá-la. O resultado demostrou que no caso daqueles que ganhavam menos para mentir, a ação os levou a inferir algum tipo de utilidade adicional da tarefa, embora sua origem evidentemente não estivesse relacionada à tarefa em si. Existe um exemplo bastante simbólico na literatura, mais especificamente na obra “Tom Sawyer”, de Mark Twain, falando sobre isso:
Tom tem de pintar a cerca da casa de sua tia, mas teme ser alvo de piadas, caso seus amigos passem por ali e o vejam fazendo esse trabalho. Assim que eles se aproximam, no entanto, Tom empunha o pincel com gosto, transformando essa atividade banal e entediante em algo único — como se estivesse até contente de executá-la. Após um diálogo divertido, Tom não só consegue que seus amigos paguem para se revezar e ajudá-lo na pintura, como faz com que todos eles sintam prazer real na tarefa.
- em outro experimento, participantes foram questionados se estariam dispostos a pagar um determinado valor — arbitrariamente definido com base nos últimos dois dígitos de seu número de previdência — por algumas garrafas de vinho e, em seguida, participar de um leilão. Aqueles cujos dígitos finais eram mais altos atribuíram um valor maior aos rótulos;
- investigações recentes concluíram que o clima, fator completamente alheio ao processo de inscrição em uma universidade, era capaz de influenciar a intenção que os alunos tinham de participar de seu processo seletivo: estudantes que visitavam o campus em um dia chuvoso se inscreviam em menor número se comparado àqueles que faziam a visita em um dia ensolarado.
Sob esta ótica, e conforme defendem alguns Cientistas Comportamentais[2],
é possível que nós não tenhamos um conjunto de preferências já formuladas, mas que nós as criemos no momento da tomada de decisão.
O comportamento, então, não é uma consequência linear da preferência:
mas sim o resultado de múltiplos fatores, como preferências inferidas, memória, contexto, emoções e ambiente que, combinados, determinam sua manifestação:
Segundo Slovic (1995, p.6):
“(…) nossas decisões não são lidas a partir de uma lista, mas construídas no momento por um processo adaptativo.”
Essa construção, por sua vez, implica em vários ruídos que se manifestam na estratégia decisória
Algumas considerações adicionais
Conforme apurado nos estudos de Ariely & Norton (2008), resíduos de decisões passadas impõem um peso às decisões presentes, mesmo quando não há nenhum fator relevante a ser considerado.
Isso dá às pessoas uma sensação incorreta de coerência e consistência em suas escolhas e faz com que elas se baseiem nesses fatores, totalmente aleatórios, para se comportar como se aqueles vinhos do experimento tivessem uma utilidade hedônica diferente.
Ademais, e como postulado por Slovic (1995), a maximização da utilidade já não é mais tida como fator crucial no processo de decisão, tendo uma influência apenas limitada. Sendo assim, seria mais correto descrever a tomada de decisão como “um processo de racionalidade limitada” (Simon, 1956), ou seja, indivíduos que procuram obter um resultado satisfatório para si ou seus desejos e objetivos, mas não necessariamente o melhor. Nessas condições, a formação da preferência é sensível à forma como a questão e as opções são apresentadas, sendo construída no próprio momento em que um comportamento ou escolha é manifestado.
Alguns especialistas levantaram questões importantes sobre o fato de as preferências serem manipuláveis: visto que elas se constroem no processo de informação, enquadramento de opções e formulação de uma resposta comportamental, isso aumenta a responsabilidade dos agentes sociais — como governos, médicos e profissionais de finanças, por exemplo –, uma vez que eles podem cercear a liberdade de decisão pela simples forma como as escolhas são apresentadas.
O ponto é válido e complexo, e não há uma resposta padrão definida para isso. Richard Thaler, Nobel de Economia em 2017 e autor da “Teoria dos Nudges”, propõe (1985) que as pessoas possam apreciar abertamente os efeitos do enquadramento a fim de gerenciar melhor suas escolhas — somente assim elas conseguirão aprimorar o processo de tomada de decisões.
Por fim, é normal que busquemos razões (internas, sociais, morais etc.) para justificar nossas escolhas. Mas devemos estar atentos ao processo de criação dessas razões, já que ele molda a própria tomada de decisão. Ainda que seja virtualmente impossível escapar a todos os vieses e inconsistências comportamentais a que nosso cérebro nos conduz, conhecê-los já é um passo importante em direção a preferências que nos sejam mais benéficas.
Saiba mais
Ariely, D.; Lowenstein, G.; Prelec, D. (2006). Tom Sawyer and the construction of value. Journal of Economic Behavior and Organization, vol. 60, pp 1–10.
Ariely, D.; Norton, M. (2008). How actions create — not just reveal — preferences. Trends in Cognitive Sciences, vol. 12, no. 1.
Dos Santos, T. R. (2020). Me dá uma mãozinha aí? Nudge e como eles têm sido usados para facilitar decisões.
Dos Santos, T. R. (2020). O contexto importa: como a Economia se tornou Comportamental.
Kahneman, D.; Wakker, P. P.; Sarin, R. (1997). Back to Bentham? Explorations of experienced utility. The Quarterly Journal of Economics, vol. 112, no. 2, MIT Press.
Shafir, E.; Simonson, I.; Tversky, A. (1993). Reason-based choice.
Simon, H. (1956). Rational choice and the structure of the environment. Psychological Review, 63, pp 129–138.
Slovic, P. (1995). The construction of preference. American Psychologist, vol. 50, no. 5, pp 364–371.
Snell, J.; Gibbs, B. J. (1995). Do consumers know what they will like? Advances in Consumer Research, vol. 22, UT, pp 277–279.
Thaler, R.; Sunstein, C. (2009). Nudge — improving decisions on health, wealth and happiness. Penguin Books.
Thaler, R. (1985). Mental accounting and consumer choice. Marketing Science, vol. 4, no. 3, pp 199–214.
Notas
[1] Detalhes sobre os experimentos e exemplos adicionais em Ariely, & Norton (2008).
[2] Vide referências de Kahneman, Payne, Shafir e Slovic.
[3] Esquema baseado na versão apresentada em TRENDS of Cognitive Science, 10.