Sociedade “paliativa”: modernidade digital, dor e consciência social

Tiago Rodrigo
6 min readApr 3, 2022

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Multidão assistindo a um show.
Na imagem: Pessoas assistindo a um show, enquanto registram o evento em seus Smartphones. Por que abdicamos voluntariamente da experiência em prol de likes?

Nossa relação com a dor indica o tipo de sociedade em que vivemos. A dor funciona como uma referência a partir da qual podemos entender relações, expectativas, sonhos e frustrações. Ao considerar apenas seu aspecto “médico”, deixamos de lado perspectivas muito mais profundas que compõem o panorama social de uma época e de um local. Entretanto, vivemos a era da algofobia — da angústia generalizada diante da própria existência da dor.

Neste breve ensaio, trago a “Sociedade paliativa” (2021), de Byung-chul Han, como pano de fundo para discutir como a modernidade digital enfrenta seus dilemas sociais mergulhada em um paradoxo: almejamos à imortalidade ao mesmo tempo em que nos desprendemos da própria essência da vida.

Em seu título mais recente, Byung-chul Han costura um novo elemento à discussão iniciada em “A sociedade do cansaço”: imersos na modernidade digital, nossa principal angústia hoje consiste em eliminar completamente a dor. Toda condição dolorosa, física ou psicológica, deve ser evitada. Assim, conflitos, controvérsias e mesmo pequenas discordâncias que poderiam levar a algum tipo de confrontação acabam cedendo espaço ao consenso, à conformidade.

É o que Han denomina a “sociedade da positividade”: nossa tentativa de desvincular a dor da própria condição humana, de ressignificar como positivos todos os aspectos da vida.

Disse David B. Morris, especialista em dor, em relação a seus conterrâneos:

“Os americanos de hoje pertencem, provavelmente, à primeira geração da Terra que veem uma existência livre de dor como um direito constitucional.”

Do desempenho no trabalho à Psicologia, as abordagens potencialmente negativas, enquadradas a partir do sofrimento, dão lugar a vertentes positivas: surgem e se disseminam técnicas para desenvolver “resiliência” e com isso formar, nas palavras de Han, “um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível” (2021, p. 8).

Almejando o bem-estar, a felicidade e o otimismo sem fim, estamos administrando a nós mesmos uma espécie de analgésico, que nos desonera e insensibiliza a tudo que não for (ou puder ser interpretado como) positivo. Nasce, assim, a “sociedade do curtir”.

Mundo instagramável

Redes sociais
Na imagem: rapaz interagindo com redes sociais — curtidas, comentários e recompartilhamentos, uma espiral de estímulos para preencher a carência narrativa da vida “real”.

Aos poucos, e de maneira voluntária, caminhamos para nos tornar a “sociedade do curtir”: expor o momento presente, ou uma fabricação dele, se faz mais importante do que efetivamente vivenciá-lo. Sacrificamos a curtição tangível em prol do like virtual, preparando meticulosamente cada situação para que pareça sublime e assim ofusque a carência de sentido que se acumula.

“Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor. Não apenas a arte, mas também a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições.” (Han, 2021, p. 9)

Essa felicidade, no entanto, tem por objetivo único o desempenho, a fim de abastecê-lo de forma crescente e ininterrupta. Uma eficiência encabeçada por laivos de automotivação, que oculta o quanto já estamos submissos à cultura tóxica da positividade: sem qualquer tipo de coação externa, nós nos supomos livres. Porém:

“‘Seja livre’ produz uma coação que é mais dominante do que ‘seja obediente’.” (p. 17)

Escrito em meio à pandemia, o livro alerta para uma mudança radical no posicionamento das massas: mesmo vivendo em uma sociedade terrivelmente desigual, acredita-se que tudo ficará bem àqueles que se esforçarem. O sucesso e seu oposto são vistos como consequência dos esforços e da vontade, transpondo para o indivíduo toda a responsabilidade sobre o seu destino.

Esse peso enorme — o der schwer gefaßte Entschluß do quarteto beethoveniano, tratado por Milan Kundera em “A insustentável leveza do ser” — precisa, portanto, ser “imunizado”, protegido contra tudo que possa diminuir-lhe o ritmo. Como consequência desse estado de “anestesia permanente” (p. 18), conhecimento e reflexão não acham seu caminho, e a verdade é reprimida.

Curiosamente, no passado, e por ocasião dos primeiros Censos, em vários locais houve revolta e levante da população — estudantes formaram barricadas para protestar contra aquilo que entendiam ser um Estado de vigilância e o fim da liberdade civil. Na época, vociferavam contra a coleta de dados que hoje nos pareceriam inofensivos: data de conclusão da escola, profissão. Já agora, entregamos uma miríade de informações pessoais, íntimas até, de maneira voluntária e irrefletida.

A dominação se consuma no momento em que coincide com a liberdade (..) A comunicação sem limites, como expressão da liberdade, inverte-se em uma vigilância total.

Dessa forma, o indivíduo se transforma em uma mera “entrada de dados geradora de lucros” (p. 64), cujo comportamento passa a ser “prognosticável e controlável” (p. 64).

Felicidade, dor e consciência

Na imagem: Representação da consciência: reflexões, construções e interpretações que o indivíduo faz acerca de si.

Quando transportada ao plano político, essa angústia (algofobia) que Han descreve assume características aterradoras, ainda que negligenciadas pela maioria: a chamada “falta de alternativa” esconde um efeito analgésico sobre a consciência política, nos tornando incapazes das reformas com que sonhamos:

O dispositivo de felicidade individualiza o ser humano e leva à despolitização e à dessolidarização da sociedade. Cada um tem de cuidar da própria felicidade. Ela se torna um assunto privado. Também o sofrimento é interpretado como resultado do próprio fracasso. Assim há, em vez de revolução, depressão. Enquanto buscamos curar nossa própria alma, perdemos de vista os contextos sociais que levam a rejeições sociais. Se medos e incertezas nos assolam, responsabilizamos não a sociedade, mas nós mesmos por isso. O fermento da revolução é, porém, a dor sentida em comum.” (p. 19)

Han contrapõe o “cansaço do nós” — entendido no contexto de fenômenos sociais, os únicos capazes de catalisar ações transformadoras — , ao “cansaço do eu” — oprimido pela sociedade do desempenho e cuja dor se torna um elemento privado e apolítico.

Sem essa consciência da negatividade compartilhada, contudo, o eu se fecha em si mesmo, sufocando qualquer tipo de resistência. E como afirma o autor:

“O cansaço-do-Eu é a melhor profilaxia contra a revolução.” (p. 19)

Nessa linha, o mundo moderno, digital, vai se despindo de suas narrativas e trocando-as por abstrações. Falamos do metaverso com entusiasmo — suas possibilidades e potencial de “conexão”. Mas como pode haver conexão em uma rota de escape deste “modo sobrevivência” em que a sociedade se encontra? Tal como outras excentricidades tecnológicas, suas raízes evocam cegueira perante as causas socioculturais da dor.

“A dor acentua a autopercepção. Ela delineia o si. Ela desenha seus contornos.” (p. 39)

Sem esse mecanismo natural, ficamos à deriva de significado e de significância. Ivan Illich, autor de “Nemesis médico” (1977), sugere até que esportes extremos e comportamentos de risco, cada vez mais populares, seriam tentativas de assegurar a seus praticantes sua própria existência:

“Estímulos cada vez mais fortes são necessários para se dar ao ser humano em uma sociedade anestesiada um sentimento de vivacidade. Drogas, violência e terror são os únicos estímulos que ainda podem mediar [uma] autoexperiência”. (Illich, ed. 2020, p. 109).

Some-se a isso o efeito da violência transmitida e noticiada:

o excesso de dor nos “obriga à passividade e à indiferença de quem observa em silêncio. Por causa de sua massa gigantesca, não podemos processá-la cognitivamente”. (p. 57)

Essa enxurrada sanguínea, por fim, promove o distanciamento entre percepção e ação: não havendo mais um ser afetado, torna-se impossível materializar qualquer chamado de intervenção.

Han conclui [cuidado, spoiler logo à frente, embora uma boa chamada para início de reflexão]:

A vida que persegue e expulsa a sua dor suspende a si mesma. Morte e dor são inseparáveis. Na dor, antecipa-se a morte. Quem deseja eliminar toda dor também terá que acabar com a morte. Mas a vida sem morte e dor não é vida humana, mas sim morta-viva. O ser humano se desfaz, a fim de sobreviver. Ele alcançará, possivelmente, a imortalidade, mas ao custo de sua vida. (p 67)

Saiba mais

Han, B. (2021). Sociedade paliativa: a dor hoje. Editora Vozes.

Dos Santos, T. R. (2021). Sociedade do desempenho: autorrealização ou autoexploração?

Dos Santos, T. R. (2020). Desempenho e cansaço: efeitos da positividade nas relações de trabalho contemporâneas.

Illich, I. (2020). Medical nemesis: The expropriation of health. KKIEN Publ. Int.

Kundera, M. (2001). A insustentável leveza do ser. Companhia das Letras.

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Tiago Rodrigo

Product Manager | Futures Thinker | Behavioral & Data Science