Sociedade do desempenho: autorrealização ou autoexploração?
Byung-chul Han é um pensador de origem sul-coreana, que emigrou para a Alemanha aos 26 anos (1985) sem saber falar praticamente nada do idioma, e obteve um doutorado em Filosofia pela Universidade de Friburgo alguns anos depois (1994).
Em “Topologia da violência”, obra publicada em 2011 — e que, de certa forma, continua o tema de “Sociedade do cansaço” (2010) — , ele discute a relação patológica entre individualidade e violência, e como a sociedade moderna transformou esta última em discurso de “perseverança”, “performance” e “autorrealização”, confundido com o senso de liberdade.
Segundo ele, a violência, percebida antigamente por meio de seu caráter visível, negativo, de força bruta
“(…) uma sociedade do sangue, que deve ser distinguida da sociedade moderna, isto é, da sociedade da alma. Naquele tipo de violência os conflitos eram eliminados pelo emprego da força. Ali, a violência exterior alivia a alma, pois ela externaliza o sofrimento. A alma não se afunda em um diálogo atormentador consigo mesma.”
se recolheu para espaços “subcutâneos”, psicológicos, criando uma força anônima que age dentro de cada um de nós e em relação a nós mesmos.
É um tipo de violência novo, mas igualmente feroz, que ele classifica como a violência da positividade, exercida sem que haja qualquer inimigo:
“Na Modernidade, a violência assume uma forma tornada psíquica, psicologizada, internalizada. As energias não são descarregadas de modo diretamente afetivo, mas são processadas, trabalhadas psiquicamente.”
E é precisamente essa característica invisível que a torna mais letal: como não a percebemos, nosso organismo não desenvolve as respostas imunológicas — Han sempre faz essas referências à Biologia — necessárias para combatê-la.
Nos tempos atuais, já não estamos submissos a ninguém. Logo, deixamos de ser “sujeitos” para nos transformar em “projetos”. Sob esta ótica, porém, a violência exterior assume a forma de autocoerção, acompanhada de um (falso) sentimento de liberdade.
Curiosamente, a autoexploração decorrente desse modelo tem um efeito muito maior e mais eficiente para o sistema capitalista: ao nos considerarmos livres para dedicar nossas vidas à busca dessa (suposta) realização, nosso desempenho acaba sendo muito mais intenso, a ponto de nos consumir totalmente (vide inúmeros casos recentes de casos de burnout e outras doenças graves ligadas à saúde mental) — uma agressividade psicológica, que a pessoa direciona a si mesma e que, muitas vezes, pode levá-la ao suicídio.
“O projeto revela ser, na verdade, um projétil que o sujeito de desempenho direciona contra si.”
Outro ponto fundamental da discussão é a crise de gratificação e insaciedade em relação às nossas conquistas. A primeira, porque estamos cada vez mais distantes (embora digitalmente acessíveis) das outras pessoas, e esse elemento externo é necessário para que haja reconhecimento e recompensa.
A segunda, porque é raro enxergarmos uma obra definitiva ou um trabalho concluído do qual tenhamos feito parte:
“(…) as relações de produção hodiernas impedem precisamente a conclusão. Ao contrário, trabalha-se na direção de um horizonte aberto; faltam as formas conclusivas que possuem um começo e um fim.”
Esse diálogo de “melhoria”, “aprimoramento contínuo”, “criar versões melhores de si mesmo(a)” assume as características de um looping infinito, e infinitamente frustrante, que mina nossas bases emocionais e psicológicas, nos estimulando a aumentar ainda mais a velocidade de desempenho:
“(…) o sentimento de ter alcançado uma meta jamais chega a se estabelecer. Não é que o sujeito narcisista não queira chegar à conclusão, ele não é capaz disso; ele se perde no aberto. Em última instância, a falta de formas de conclusão não é condicionada economicamente, pois abertura e inconclusão favorecem o crescimento pessoal.”
Esse movimento se estabelece como ferramenta de autodestruição, silenciosa, lenta e imperceptível; uma luta em que o sujeito quer vencer a si mesmo — tal como numa visão absurda de alguém que tenta ultrapassar a própria sombra.
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Ao longo do texto, Han faz também um paralelo interessante entre a busca desenfreada por dinheiro e a imortalidade:
“O capital também pode estar relacionado e ser interpretado como tempo, pois dispondo de dinheiro, uma pessoa pode fazer com que outras pessoas trabalhem para ela. ‘Capital infinito’ gera a ilusão de ‘tempo infinito’. Nesse sentido, a acumulação de capital trabalha contra a morte, contra a falta absoluta de tempo.”
enfatizando que a distinção entre exploradores e explorados desaparece: a vítima é, ao mesmo tempo, cúmplice do sistema, enquanto o agressor é responsável pelo seu funcionamento, sendo impossível distinguir um do outro.
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Assim, nossa liberdade de fato está condicionada à percepção desse cenário de agressividade autoinfligida; em sermos capazes de desacelerar o passo, para nos pôr em contato novamente com nosso eu-interior.
Em um mundo de superabundância de informação, onde as pessoas estão cada vez mais preocupadas em absorver, é justamente esse excesso de disponibilidade de conhecimento que representa a maior ameaça a todas as formas de defesa humana.
“Tudo cresce além das próprias determinações, o que leva à adiposidade e ao entupimento do sistema: ‘São produzidas e acumuladas tantas coisas, que já não se dispõe de tempo para avaliar sua necessidade […]. São produzidas e emitidas tantas notícias e sinais, que já não há tempo para ler’.”
Ou, na letra de Caetano Veloso,
“O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia”
~ Alegria, alegria (1968)
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Recentemente, lendo para minha filha “Grande panda e pequeno dragão”, de James Norbury — falarei sobre este livro n’outra ocasião — , me deparo com esta imagem, que traduziria muito bem as 200 páginas de Han:
Saiba mais
Dos Santos, T. R. (2020). Desempenho e cansaço: efeitos da positividade nas relações de trabalho contemporâneas.
Han, B. (2017). Topologia da violência. São Paulo: Editora Vozes.