Isto é uma ameaça? 5 esferas sociais em que nos tornamos defensivos

Tiago Rodrigo
8 min readJun 29, 2021

Durante mais de três séculos, a máxima de René Descartes sintetizou o paradigma da racionalidade humana: “Penso, portanto sou”. Única dentre os seres deste planeta, nossa capacidade analítica — bem como seus desdobramentos para o passado, o futuro e o imaginário — definia nossa própria essência.

No entanto, recentes avanços tecnológicos, especialmente aqueles ligados ao entendimento do sistema nervoso, permitiram às Neurociências um novo olhar sobre a evolução e os processos cerebrais, redescobrindo em nós uma base muito mais emocional, através da qual a razão poderia ser ativada.

Neste artigo, discuto alguns estudos sobre organização cerebral, o modelo SCARF de David Rock, e como líderes podem criar estratégias de atuação a partir de um conjunto de 5 respostas sociais observadas em seus times.

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“Somos seres emocionais que desenvolveram a capacidade de pensar, e não o contrário.”

É o que afirma o neurocientista português António Damásio, um dos mais proeminentes estudiosos dessa área.

Nos últimos anos, a tecnologia permitiu que pesquisadores evoluíssem suas técnicas de estudo e analisassem o funcionamento do cérebro em um ser humano vivo, ampliando assim o entendimento a respeito de processos neurais e funções específicas a cada unidade de nosso sistema nervoso.

Nesse contexto, a tomada de decisão ganhou uma nova perspectiva: se antes nos apoiávamos no conhecimento e na racionalidade como as principais forças para uma boa escolha, Damásio alerta que decisões sensatas na verdade partem do entendimento de que vários fatores pesam sobre esse processo — inclusive questões emocionais e, consequentemente, sentimentos.

Aqui, uma distinção importante:

Emoções são reações que têm início em nosso cérebro, ao captar os estímulos do ambiente, mas que se desdobram num plano estritamente biológico através de respostas físicas e químicas muito breves, e sobre as quais não temos controle. Sentimentos, por outro lado, são uma experiência mental (interpretação subjetiva) que formulamos a respeito dessa cadeia de reações — portanto, mais duradoura. Se as emoções podem ser percebidas, ainda que parcialmente, a partir de mudanças sutis em nosso corpo, como um franzir de testa, uma leve aceleração nos batimentos cardíacos, sudorese, ou ainda pequenas contrações musculares, os sentimentos não: uma pessoa é capaz de esconder totalmente ou projetar variações deles (fingi-los), mas não consegue fazer o mesmo para as emoções.

Organização cerebral: ameaça ou recompensa

As emoções têm um papel fundamental em nossa interpretação do mundo, visto seu disparo imediato e inevitável. E considerando-se que nosso cérebro foi “programado” para minimizar riscos e maximizar recompensas, acabamos instintivamente classificando os estímulos do ambiente como algo

  • a ser evitado (ameaça); ou
  • de que podemos nos aproximar (recompensa)

Esse princípio de organização cerebral foi verificado em 2008 por Andrew Elliot — psicólogo americano também conhecido por pesquisas sobre mindset realizadas junto à Carol Dweck — e traz diversas implicações, particularmente quando a resposta de afastamento é ativada:

  • campo de visão: detalhes do contexto, assim como elementos e informações que fogem do padrão a que estamos acostumados, tendem a permanecer invisíveis, limitando aquilo que podemos enxergar — seja visualmente, seja em termos de associação de ideias;
  • memória de trabalho: tendemos a recuperar menos informações da memória, sobretudo aquelas geradas há mais tempo, o que restringe nosso poder de análise;
  • criatividade: o receio de cometer erros, do julgamento de terceiros, de situações de conflito ou embaraçosas nos faz arriscar menos, repetir padrões de comportamento e pensamento, além de silenciar ideias e abordagens potencialmente originais;
  • colaboração: a interpretação emocional a respeito de outras pessoas pode fazer com que nos privemos de trabalhar com a elas, e até mesmo de estabelecer linhas de comunicação;
  • aprendizagem: a neuroplasticidade, isto é, o processo por meio do qual nosso cérebro cria conexões (conhecimento e experiência), é reduzida sempre que entramos em um “modo defensivo”

Outro ponto importante é que o cérebro trata dor física e dor social (como exclusão, indiferença ou perda de status, por exemplo) de forma equivalente. A descoberta foi feita por Matthew Lieberman & Naomi Eisenberger em 2009, e indica que, diante de situações de estresse social, nosso sistema nervoso direciona recursos para lutar ou fugir, em detrimento de outras tarefas cognitivas mais sofisticadas.

Com isto em foco, o neurocientista David Rock desenvolveu um modelo que relaciona as cinco maiores dimensões sociais que costumam ativar com mais intensidade a percepção de ameaça.

Modelo SCARF

SCARF é o acrônimo em inglês para: status [S], certeza [C], autonomia [A], relação [R] e justiça [F]. O modelo ilustra esferas em que situações de novos estímulos nos tornam mais propensos à resposta defensiva e, consequentemente, às limitações cognitivas por ela provocadas.

Todos nós podemos ser influenciados pelas cinco. Entretanto, normalmente há uma ou duas em que os efeitos são mais preponderantes. Por conta disso, o SCARF tem sido utilizado como uma ótima ferramenta para que possamos entender nuances de nosso comportamento e desenvolver ações para minimizar sentimentos de ameaça:

Status

Diz respeito à percepção e valorização do indivíduo no contexto em que está inserido.

A resposta límbica pode ser ativada por comparações sociais, ambientes exageradamente competitivos, comunicação agressiva, feedback superficial ou fatores que afetem a autoimagem dessas pessoas; resulta em estresse, menosprezo, resistência ou indiferença.

Pode ser trabalhada a partir do incentivo ao aprendizado de novas habilidades, apoio da liderança para melhoria de desempenho, reconhecimento dos resultados entregues e participação em ações que contribuam com a melhoria do grupo em que vivem (trabalho ou comunidade, por exemplo).

Certeza

Nosso cérebro interpreta ambiguidades e incerteza como um sinal de erro. Dessa forma, esta esfera se relaciona à necessidade de segurança e clareza sobre os acontecimentos — inclusive, futuros.

A resposta límbica pode ser ativada em situações de confusão, dúvida ou insegurança e provocar ansiedade excessiva, paralisia. Estratégias como alinhamento de expectativas, compartilhamento de planos futuros e conversas transparentes a respeito de mudanças são bons caminhos para mitigá-la.

Autonomia

Estudos de Steven Maier apontaram que o nível de controle de um animal sobre sua situação, especialmente em casos estressantes, influencia diretamente sua capacidade de decidir e agir. Assim, a autonomia está ligada à possibilidade de exercer domínio sobre uma situação, tomar decisões e agir segundo seus próprios valores e ideais.

A resposta límbica pode ser ativada quando a pessoa está sujeita a contextos de microgestão, imposições ou estruturas rígidas demais, e a partir de líderes que determinam como as tarefas devem ser feitas. Suas consequências englobam frustração, desmotivação e ansiedade.

Pode ser contornada conferindo-se à pessoa um senso de controle sobre suas zonas de responsabilidade, além de clareza sobre como seus comportamentos impactam diretamente os resultados.

Relação

Tem a ver com a maneira como nos relacionamos em nossos ciclos sociais. Não se trata, contudo, de intimidade, mas de proximidade.

A resposta límbica está relacionada à sensação de não pertencer ao grupo, e geralmente resulta em isolamento. Pode ser trabalhada estabelecendo-se relações de confiança e empatia dentre os membros do grupo, por meio de eventos de integração ou pela atribuição de mentores / coaches / “padrinhos” / “madrinhas”, principalmente quando há novas pessoas sendo integradas ou fusão entre culturas diferentes.

Justiça

Percepção de que as pessoas são tratadas equitativamente.

A resposta límbica surge quando percebemos não haver esse equilíbrio por meio de decisões justas. Assim, resulta em diminuição da confiança, raiva, hostilidade.

Pode ser trabalhada a partir do equilíbrio e transparência, especialmente no que diz respeito a regras, critérios de avaliação e explicações devidamente contextualizadas.

Liderança: como implantar o método SCARF

Líderes são os maiores reguladores sociais de uma organização: suas ações e decisões funcionam, direta ou indiretamente, como balizador de comportamento para suas equipes como um todo. Dessa forma, é possível aplicar o método SCARF para entender as características comportamentais de um time, e adequar falas, posturas e estratégias. Afinal, o problema por vezes não está na situação em si, mas na forma como a interpretamos e reagimos a ela. Segundo Platão:

“A realidade é criada em nossa mente. Podemos mudar a realidade, mudando nossa mente.”

A partir dessa perspectiva, eis algumas possibilidades para testar em sua empresa:

  • se você já utiliza e atingiu um bom nível de maturidade em métodos ágeis: aproveite a cerimônia da retrospectiva para abordar essas esferas, a partir de exemplos reais verificados na última iteração. Observe, no entanto, que não se trata de uma discussão no plano individual, mas sim como as reações sociais do grupo podem ser usadas para elevar o autoconhecimento e, a partir dele, o entrosamento e a comunicação;
  • equipes geograficamente distantes (vale inclusive para este momento de work from home): monte uma agenda em que grupos que normalmente interagem entre si à distância possam se encontrar, ainda que virtualmente. Caso não haja uma abertura natural para discussão, transforme este momento em uma oportunidade de integração com atividades “quebra-gelo” e cases que simbolizem cada uma das esferas do SCARF. O posicionamento das pessoas nessa dinâmica será um bom indicador de quais aspectos sociais lhes são mais importantes;
  • sessões de feedback: durante os encontros 1:1, mapeie situações em que cada membro do seu time reporta desconforto, irritação, frustração ou alguma resposta negativa nas interações com os demais. Repetições de um determinado padrão podem indicar as esferas mais salientes;
  • mapas e discussões: dependendo do grupo, workshops sobre temas relacionados (organização cerebral, tomada de decisão, neurociências) podem se transformar em grandes oportunidades para discutir o assunto em plenária. Neste caso, situações hipotéticas podem ser trazidas para debate, ou a pessoa facilitando o evento pode usar um mapa de perguntas, respondido individualmente, tal como este abaixo:

Somos governados por nossas emoções, embora tenhamos os instrumentos necessários para recobrar o controle. Como líderes, é nosso papel contribuir para o desenvolvimento contínuo de nossas equipes — sempre a partir de nosso próprio exemplo.

Saiba mais em:

Damasio, A. R. (2018). A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura. São Paulo: Companhia das Letras.

Damasio, A. R. (2012). O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras.

Elliot, A. J. (2008). Approach and avoidance motivation. In: Handbook of approach and avoidance motivation. Psychology Press, pp. 1–14.

Herculano-Houzel, S. (2017). A vantagem humana: como nosso cérebro se tornou superpoderoso. São Paulo: Companhia das Letras.

Lieberman, M. D., & Eisenberger, N. I. (2009). Pains and pleasures of social life. Science Magazine, Vol. 323, 13 February, pp. 890–1

Maier, S. F., Amat, J., Baratta, M. V., Paul, E., & Watkins, L. R. (2006). Behavioral control, the medial prefrontal cortex, and resilience. Dialogues in clinical neuroscience, 8(4), 397–406.

Rock, D. (2017). Liderança tranquila: não diga aos outros o que fazer, ensine-os a pensar. Rio de Janeiro: Alta Books.

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Written by Tiago Rodrigo

Product Manager | Futures Thinker | Behavioral & Data Science

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