Decisões em jogo: o que o Banco Imobiliário pode ensinar sobre escolhas financeiras

Tiago Rodrigo
11 min readNov 3, 2021

Neste artigo, trago a história do tradicional “Banco Imobiliário”. Sob a luz das Ciências Comportamentais, contextualizo as escolhas financeiras que fazemos durante uma partida com as decisões que podemos tomar em relação ao nosso próprio patrimônio.

O Banco Imobiliário — originalmente, Monopoly — é considerado um dos jogos de tabuleiro mais famosos de todos os tempos (Orbanes, 2007). Foi criado em Washington D.C., no ano de 1903, por Elizabeth “Lizzie” Magie, como uma ferramenta educacional para demonstrar as consequências da concentração de terras e do monopólio sobre a economia de uma sociedade. Segundo Lizzie, o jogo provocaria nas crianças um senso crítico natural sobre justiça e desigualdade que elas seriam capazes de carregar até à idade adulta.

Foi somente no início dos anos 30, no entanto, quando Charles Todd apresentou o jogo a um casal de amigos, Esther Jones e Charles Darrow, que o Monopoly — então The Landlord’s Game — passou a ser distribuído em escala e ganhar popularidade nos EUA. Naquela noite, Darrow [1] solicitou a Todd uma versão escrita das regras e compilou-as para comercialização. Após grande sucesso no Natal de 1934, a Parker Brothers adquiriu os direitos sobre o jogo que, a partir daí, foi distribuído para outras regiões e países, ganhando, desde os anos 90, versões adaptadas a diferentes culturas.

Nesse âmbito, milhões de pessoas já se divertiram com o Banco Imobiliário ao longo de pelo menos 7 décadas: qual de nós não se lembra, não sem uma certa nostalgia, de reuniões entre familiares ou amigos em que partidas foram disputadas com emoção? Porém, nossa postura perante o Banco Imobiliário pode ser observada e estudada, especialmente sob a ótica da Economia Comportamental, uma vez que nele lidamos com uma grande quantidade de decisões financeiras e, consequentemente, demonstramos — ainda que com capital fictício — como somos influenciados por vieses cognitivos, atalhos mentais e por projeções temporais inconsistentes.

Enquanto lançamos os dados, não é só nossa expectativa que acompanha com ansiedade os números. Também são evidenciadas nossas características psicológicas frente à administração financeira e de patrimônio, às perdas e ganhos, às decisões de curto e longo prazo e a resposta que damos em um contexto em que diferentes players — no sentido lúdico e mercadológico que o termo possui — disputam a soberania econômica. O Banco Imobiliário traz consigo uma proposta que vai além de monopolizar recursos e propriedades: trata-se de levar todos os outros participantes à falência completa. E é nesse contexto que analiso alguns pontos de nosso comportamento, através de referências aos trabalhos de grandes nomes das Ciências Comportamentais.

Atalhos no tabuleiro, atalhos mentais

O conceito de heurística pode ser entendido como atalhos cognitivos que nossas mentes buscam e percorrem para simplificar decisões, representando um processo de substituição de uma questão difícil por outra mais simples — definição dada por Kahneman. Isto ocorre porque há uma espécie de “disputa” interna entre nossos Sistemas 1 e 2, em relação às informações disponíveis e como elas podem ser estruturadas para uma decisão otimizada:

O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, impressões e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias. Quando tudo funciona suavemente, o que acontece na maior parte do tempo, o Sistema 2 adota as sugestões do Sistema 1 com pouca ou nenhuma modificação. Você geralmente acredita em suas impressões e age segundo seus desejos, e tudo bem — normalmente.

Kahneman, 2011

Tanto no tabuleiro quanto na vida, é absolutamente impossível deter e analisar todas as informações sobre um determinado assunto: as cartas que cada jogador possui são secretas e a forma como cada um reage a elas é totalmente subjetiva, influenciada pela personalidade, cultura, educação, pelo “humor” do momento — a questão dos estados “frio” e “quente” descrita por Ariely (2008) –, dentre tantos outros fatores.

Assim, ao se deparar com um cenário, o Sistema 1 tece conclusões que induzem nossa ação nos dados e nas negociações. Não obstante, o Sistema 1 e sua constante busca por respostas rápidas não é o melhor dos parceiros para se ter ao lado ao pensar na próxima jogada: em razão da grande quantidade de possibilidades em jogo — além das que não estão necessariamente evidentes — e da complexidade de analisá-las como um conjunto interrelacionado de fatos, nosso cérebro compõem um panorama simplificado que, muitas vezes, é uma visão iconográfica, distorcida da realidade. E é exatamente nesse momento que tomamos decisões precipitadas, com pouco embasamento estratégico, e caímos naquela posição que ao mesmo tempo irrita e inflama nossa ansiedade:

Por outro lado, o Sistema 2 — o grande explorador de informações e dados encrustados em nossa mina cerebral –, é um parceiro que atrasa a partida a todo momento, ao tentar compreender os desdobramentos de cada jogada. Afinal, suas decisões buscam melhores resultados ao considerar um horizonte maior, além de questionar paradigmas — o problema é que assim o jogo pode se tornar cansativo.

Nessa disputa, o importante é notar como funcionam os processos decisórios durante a partida — e, em seguida, utilizar esses ensinamentos, contextualizando-os no dia a dia, quando lidamos com dinheiro real e temos de optar entre a compra financiada de um imóvel ou a aplicação do montante disponível em um fundo de investimentos indexado ao IPCA, por exemplo.

Melhor não correr o risco de ficar uma rodada sem jogar — o custo verdadeiro disso pode representar o fim de nossa tranquilidade financeira e uma pressão crescente para fazer apostas cada vez mais ousadas…

Sorte ao longo do tempo: como o curto e longo prazo se misturam nas cartas

O horizonte temporal tende a ofuscar nossa avaliação e nos conduz a decisões no mínimo questionáveis. No longo prazo, a maioria de nós se julga controlada e paciente. Além disso, nossa estratégia tende a superestimar condições vindouras, resultando em jogadas equivocadas: assumimos um ônus desproporcional ao lidar com dinheiro e projetar sua administração no futuro distante.

A questão da aposentadoria é um exemplo muito impactante disto: nosso eu do amanhã pode ser um sujeito completamente diferente daquele que somos hoje — e o excesso de otimismo ou as distorções temporais que fazemos podem acabar nos trazendo uma situação problemática que terá de ser resolvida em um momento em que nosso poder de decisão ou nossa capacidade de alterar o rumo da situação é frágil ou até inviável.

De certa forma, tomar decisões sobre o longo prazo implica também em controle emocional, e o Banco Imobiliário nos dá um ótimo campo de testes para que possamos descobrir a nós mesmos em situações que envolvem pressão, entusiasmo, ansiedade, pressa, raiva.

Em uma palestra bastante didática, o economista Eduardo Giannetti discursa sobre como posicionamos nossas decisões ao longo do tempo e as trocas intertemporais, que podem ser:

  • credoras, quando assumimos custos no presente para usufruir de benefícios no futuro. É o caso de investimentos, por exemplo, em que renunciamos a um determinado valor hoje para receber uma renda adicional após algum tempo (que pode variar bastante, conforme o tipo de aplicação); ou
  • devedoras, em que aceitamos um ônus adicional no futuro para desfrutar de um benefício no curto prazo. Podemos exemplificar esta troca com os financiamentos: para adquirir um carro novo, uma pessoa pode desembolsar uma quantia substancialmente maior dividida em parcelas que se projetam longos anos à frente, visto não possuir a quantia completa no instante da compra.

É, em suma, um jogo de autocontrole. Mas apesar do direcionamento dos exemplos acima, ambas podem ter seu lado positivo e negativo, e ser consideradas adequadas em um dado contexto. Ademais, não se trata apenas de questões financeiras: as trocas intertemporais também compreendem decisões sobre saúde, bem-estar, relacionamentos, lazer e tantos outros.

Assim, é muito difícil fazer projeções sobre o futuro, seja qual for o tópico. Mas é imprescindível preparar-se para situações que só ocorrerão no longo prazo. Influenciados pelo viés do otimismo, prevemos um amanhã mais próspero, com salários mais altos, uma economia aquecida (Plano de previdência? Seguro de vida? Bobagem!).

Não nos deixemos prender a esta armadilha!

No jogo, nós nos deparamos com essa situação e suas consequências, conforme progredimos — ou ficamos para trás.

O valor do que é meu e o impacto das perdas

Um dos vieses estudados nas Ciências Comportamentais e que se apresenta com muita intensidade no jogo é o efeito dotação (Kahneman, Knetsch & Thaler, 1990). Thaler o descreve como a sobrevalorização de um determinado item quando temos propriedade sobre ele. É aquele imóvel no quadrado “Copacabana”, cujo aluguel nos oferece uma remuneração baixa, mas que insistimos em manter em vez de barganhá-lo por outro que nos daria melhores resultados.

Esse viés torna-se negativo a partir do momento em que nos impede de progredir racionalmente no jogo, nos atrelando a uma posição que, dadas as possibilidades, poderia ser mais favorável para o objetivo final, que é monopolizar propriedades. Ele limita nossa capacidade de negociação.

Não é raro que uma partida leve várias horas porque um ou mais jogadores se recusa a abrir mão de uma posição adquirida ao supervalorizá-la na troca por outras. Mas como lidar com isso?

Um dos primeiros passos é entender a lógica de trocas que faz parte do jogo: cada um dos participantes tentará obter as melhores negociações para si. Porém, essas transações nem sempre consideram uma lógica de longo prazo ou envolvem um horizonte de oportunidades mais amplo — mais uma chance de deixar seu Sistema 1 de lado e tentar visualizar quais outras possibilidades podem ser abertas a partir desta movimentação.

No âmbito financeiro, muitas vezes acabamos mantendo investimentos em fundos ou ações que não nos trazem o melhor retorno, simplesmente porque sentimos que eles “nos pertencem”, que o valor atual não reflete seu potencial (percepção subjetiva, não leva em conta fatores de mercado) ou que nossa estratégia está correta (ainda que o mercado dê indícios claros do contrário).

Essa perspectiva ainda pode conduzir a outro viés, de aversão à perda, em que nos prendemos a uma posição perdedora por mais tempo do que seria financeiramente aceitável, a fim de não realizar um prejuízo e, consequentemente, materializá-lo em nosso subconsciente. Um exemplo disso é a máxima bastante popular — e equivocada! — de que a perda só é consumada quando o trade for encerrado. Na verdade, esta ideia desconsidera o custo de oportunidade e, principalmente, perdas adicionais indiretas, como inflação e taxas de administração que continuam a afetar o valor da carteira de investimentos a despeito do resultado das operações.

Uma boa opção para evitar esses vieses é traçar uma estratégia que preveja tanto um cenário positivo, de lucros em linha ou acima do esperado inicialmente, e — principalmente — o caso negativo, se a operação sofrer um revés. A utilização de ferramentas complementares, como lembretes da estratégia ou travas de operação — no caso da Bolsa de Valores, podemos programar uma compra ou uma venda a partir de stops, que são disparados automaticamente a partir do momento que o ativo selecionado atinge um determinado valor — adicionam uma barreira de proteção, pois eliminam o fator emocional do momento: é fácil dizer a si mesmo que você vai encerrar uma operação caso ela atinja 5% de prejuízo; é muito difícil, porém, executar ordem quando esse patamar é atingido e você sente o impacto psicológico de uma perda de, digamos, R$ 20.000,00.

Decisões que nos permitem continuar no jogo

Ter uma estratégia é fator essencial para tomar melhores decisões — no jogo e em nossas finanças pessoais. O gato de Cheshire, concebido por Carroll, já dizia que “se não sabemos para onde ir, qualquer caminho serve”. Em outras palavras: ficamos à mercê dos acontecimentos, tendo de reagir aos fatos, geralmente com pouca margem para raciocinar corretamente.

Isso não quer dizer que precisamos de um conhecimento avançado em matemática financeira ou que tenhamos de montar planilhas e cálculos complexos de análise de risco. Significa apenas que precisamos traçar objetivos e de que forma pretendemos alcançá-los — e isso vale para planos de aposentadoria, compra de imóveis, investimentos em ativos com baixa ou alta liquidez, viagens internacionais, hábitos alimentares mais saudáveis, e outras questões que envolvam horizontes maiores do que o hoje ou o agora.

Como vimos, o Banco Imobiliário, além de um grande divertimento, pode ser uma ótima oportunidade para testarmos nossos processos decisórios e observar vieses e heurísticas que impõem “obstáculos” no caminho — e, acima de tudo, como lidamos com essas situações. Assim, evitamos trazer para fora do tabuleiro decisões que podem nos prejudicar.

Que tal uma partida agora sob essa nova ótica?

Notas

[1] Durante anos, a ideia do jogo foi atribuída a Charles Darrow, que supostamente o teria criado no porão de sua casa, em meio ao caos econômico da Grande Depressão. Apesar do romantismo da história, que culmina com a recuperação financeira de Darrow, até então um vendedor praticamente falido, a verdadeira origem do jogo é ainda mais interessante, considerando-se que é fruto da visão de uma mulher completamente à frente de seu tempo. Para se ter uma noção, Lizzie Magie registrou a patente do Monopoly — na época “The Landlord’s Game” — em 1906, ano em que as patentes detidas por mulheres representavam menos de 1% do total de pedidos registrados nos EUA. A história completa e todas as suas nuances pode ser lida em The Monopolists: obsession, fury, and the scandal behind he world’s favorite board game, de Mary Pilon.

[2] Frase célebre, ainda que muitas vezes utilizada fora de contexto, do livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll:

“(…) Would you tell me, please, which way I ought to go from here?

‘That depends a good deal on where you want to get to’, said the Cat.

‘I don’t much care where’, said Alice.

‘Then it doesn’t matter which way you go’, said the Cat.”

Saiba mais em:

Ariely, Dan. (2020). Previsivelmente irracional — as forças invisíveis que nos levam a tomar decisões erradas. Edição revista e ampliada. Sextante.

Carroll, Lewis. (2013). Alice — edição comentada e ilustrada. Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do espelho. Clássicos Zahar.

Giannetti, Eduardo. (2012). O valor do amanhã. Companhia das Letras.

Kahneman, Daniel. (2011). Rápido e devagar — duas formas de pensar. Objetiva.

Kahneman, Daniel. (2003). Maps of bounded rationality: psychology for behavioral economics. The American Economic Review, 93, pp 1449–1475.

Kahneman, Daniel; Knetsch, Jack L.; Thaler, Richard. (1990). Experimental tests of the endowment effect and the coase theorem. Journal of Political Economy, 98, pp 1325–1348.

Orbanes, Philip. (2007). Monopoly: the world’s most famous game — and how it got that way. De Capo Press.

Pilon, Mary. (2015). The Monopolists: obsession, fury, and the scandal behind the world’s favorite board game. Bloomsbury Press.

Shane, Frederick.; Loewenstein, George; O’Donoghue, Ted. (2002). Time discounting and time preference: a critical review. Journal of Economic Literature, volume XL, June, pp 351–401.

Shefrin, Hersh & Thaler, Richard. (2004). Mental accounting, saving and self-control. In: Camerer, Colin.; Loewenstein, George.; Rabin, Matthew. (ed.). Advances in Behavioral Economics. Princeton University Press, pp 395–428.

Soll, Jack B.; Milkman, Katherine L.; Payne, John W. (2015). Outsmart your own biases. Artigo escrito para a Harvard Business Review, edição de maio.

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Tiago Rodrigo

Product Manager | Futures Thinker | Behavioral & Data Science