5 passos para pensar o futuro de forma estratégica

Tiago Rodrigo
12 min readNov 10, 2021

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Ilustração de Jesseca Buizon, parte do projeto “Ahead by a Decade: Employment in 2030”, disponível aqui.

Imagine uma expedição arqueológica: várias pessoas escavando terrenos, realizando pesquisas, entrevistas e coletando materiais. Esses(as) “Indiana Jones", contudo, não estão atrás de múmias ou tesouros escondidos por gerações passadas; mas, sim, de indícios sobre como será nossa vida daqui a algumas décadas. Essa abordagem é uma das bases do chamado “pensamento futuro” (Futures Thinking), técnica que nos permite vislumbrar oportunidades e nos preparar em relação ao porvir.

O conceito de “pensamento futuro”

Muitas pessoas alegam ter a capacidade de prever o futuro. Tal habilidade, contudo, sequer faz sentido [1]. Afinal, futuro não é algo já definido e que simplesmente acontece conosco; futuro é a consequência de ideias, ações e decisões que se desdobram ao longo do tempo.

Mas se não é possível visualizar fatos vindouros, por que então pensar o futuro? Marina Gorbis, diretora-executiva do Institute for the Future, justifica:

“(…) este é um exercício que permite sua própria inoculação. Ao vislumbrar uma série de possibilidades em relação ao futuro, você tem a oportunidade de se preparar melhor para elas”.

Isto porque o pensamento futuro tem a ver com imaginação, com a criação de mapas que nos permitam visualizar oportunidades e, sobretudo, com nosso protagonismo: de que forma podemos tomar parte em ações que concretizem as visões de futuro desejadas, e evitar as que nos parecem negativas?

E, se não existem dados sobre o futuro, há entretanto uma porção de indícios — chamados de “sinais” — pairando ao nosso redor: tendências que estão se manifestando e que apontam caminhos e desdobramentos possíveis: tecnologias, produtos, ideias, políticas, padrões de comportamento, enfim, mudanças que pertencem a nichos específicos, acontecendo de forma restrita ou limitada, mas que sinalizam mudanças em uma sociedade. Estar atento a esses sinais é o primeiro passo para pensar (e nos preparar para) esse futuro.

“Vítimas” do porvir?

Em 1984, Alvin Toffler, autor e futurista norte-americano, nos alertou sobre o “choque futuro” (future shock, no original): um estado semelhante às grandes diferenças culturais que um(a) viajante vivencia quando aterrissa em outro país, envolvendo falta de orientação, desconhecimento de costumes e um certo desconforto ou mal-estar:

“Agora imagine não apenas um indivíduo, mas uma sociedade, uma geração inteira subitamente transportada para esse mundo. O resultado é a desorientação em massa, um estarrecimento em larga escala acerca do futuro.”

Em meio às mudanças climáticas, novos canais de informação (ou desinformação), e a crescente automação de processos, milhões de pessoas estão nesse estado, dominadas por uma sensação de impotência — tal como vítimas inevitáveis desse choque provocado pelo futuro. Daí a importância urgente da disseminação de estudos nessa área.

Olhando para trás para enxergar à frente

Imaginar um futuro distinto da forma como as coisas são hoje é um exercício por vezes difícil, pois tendemos a projetar as limitações atuais nesse processo. Porém, grandes transformações acontecem — e muito mais rápido do que imaginamos —, de forma que revisitar o passado e a sucessão de eventos que foram desencadeados é uma forma de expandir nossa mente para pensamentos de futuro.

Ao voltar nossos olhos “para trás”, conseguimos listar elementos chave de mudança, como eles se conectaram para criar eventos maiores e muitas vezes imprevisíveis, e o fluxo inexorável desse processo.

Sendo assim, proponho aqui um exercício:

  • escolha um tema que seja do seu interesse, a fim de pensar como ele poderá ser diferente no futuro. Pode ser um objeto simples do cotidiano (futuro do lápis de cor), um serviço (futuro do saneamento básico), uma região (futuro do bairro da Saúde), um contexto (futuro da educação infantil), o que você achar mais interessante pensar neste momento;
  • estabeleça uma escala de tempo para analisá-lo, porém suficientemente longa para compreender uma série de transformações históricas. Dica: o horizonte passado deve ser ao menos duas vezes maior do que o horizonte que você está tentando projetar no futuro, embora não haja propriamente um limite. Por exemplo: se quero refletir sobre possibilidades para o futuro da educação infantil em 10 anos, devo estabelecer essa régua temporal no mínimo 20 anos para trás, a fim de mapear o que já aconteceu até agora:
  • pense em grandes transformações que ocorreram nesse período histórico: eventos, descobertas, inovações, mudanças de lei ou comportamento, dentre outras. Liste-as nessa escala, organizando-as de forma cronológica. Para facilitar, você pode projetar o exercício em uma folha A3, quadro branco com notas adesivas ou ferramenta digital, como Miro / Mural. Abaixo, trago um exemplo de framework desenvolvido pelo Institute for the Future, que traduzi e adaptei para o exercício:
  • crie uma sessão de insights, a fim de discutir tópicos como: Quais foram as implicações dessas mudanças? O quão rápido elas aconteceram? Como as pessoas lidaram com isso? Houve grandes rupturas? Que outras áreas foram afetadas? O que continuou igual? Quanto tempo se passou entre cada um desses pontos? Ainda vivenciamos reflexos desses eventos? e assim por diante;
  • projete novas transformações no futuro, considerando o horizonte que você definiu anteriormente: que tendências têm se manifestado no presente? Que tipo de mudança elas representam? O que aconteceria se elas se tornassem mais populares ou abrangentes? Que tipo de impacto elas causariam, quem seria afetado(a) e de que maneira?, dentre outras questões análogas que você julgar importantes.

Exemplificando

Pondo tudo isso em prática, exemplifico a utilização da ferramenta pensando o futuro da engenharia ligada a transportes aéreos, com base em um trabalho que realizei recentemente:

  • Neste exercício, iniciei a pesquisa lá atrás, cerca de mil anos antes de Cristo, na China, quando a pipa foi inventada. Embora ela não tivesse nenhum propósito relacionado a transporte, o objeto demonstrou alguns fatores importantes que influenciavam sua estabilidade no ar — fenômenos que ainda levariam alguns séculos para serem compreendidos, mas que traziam à tona, de forma empírica, esses desafios. A invenção pode ter inspirado os chineses da época — e outros povos, conforme essas culturas começaram a ter contato entre si e promover trocas — a considerar o voo como algo um pouco mais próximo da realidade, e não apenas uma habilidade de pássaros e insetos;
  • segunda metade do século XV: Leonardo da Vinci desenha os primeiros protótipos de máquinas voadoras. A curiosidade e iniciativa de experimentação desse grande inventor levam a humanidade a um grande período de descobertas sobre forças que governam a natureza e instigam sua imaginação;
  • 1783: em Paris, os irmãos Montgolfier realizam o primeiro voo de balão tripulado. Ainda que distinto dos desenhos de da Vinci, essa nova abordagem parte de conhecimentos mais aprofundados sobre as forças do ar, da gravidade e sobre como obter o controle de movimentos de decolagem e pouso verticais, a partir de trocas de ar quente e frio. Pela primeira vez na história, o ser humano pôde, ele próprio, literalmente tirar os pés do chão e contemplar o mundo lá do alto;
  • 1903–1906: dos Irmãos Wright, nos EUA, ao 14-bis de Santos Dumont, na França, os primeiros aparelhos mais pesados do que o ar são construídos e testados com sucesso, abrindo espaço para a aviação;
  • 1928: Frank Whittle, engenheiro e inventor britânico, membro da RAF (Força Aérea Real), desenvolve o motor com propulsão a jato. Ideia seria aperfeiçoada durante a II Guerra Mundial e nos anos posteriores, viabilizando aos poucos as rotas de transporte comercial;
  • 1961: a corrida tecnológica desencadeada pela Guerra Fria moveu EUA, URSS e aliados a buscar a supremacia em diversas frentes. Uma das mais simbólicas foi a conquista do espaço: neste ano, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin se torna a primeira pessoa a viajar pelo espaço, completando uma órbita pela Terra, dentro da Vostok;
  • 15 de setembro de 2021: através da SpaceX, empresa idealizada por Elon Musk, o espaço deixa de ser exclusividade de cientistas e pessoas altamente treinadas, e passa a estar ao alcance de qualquer pessoa (suficientemente milionária, por enquanto). Nesta data, a missão Inspiration4 leva quatro civis para a órbita terrestre

A partir desses marcos históricos no contexto da aviação — e note que eu poderia ter incluído outros tantos, mas optei por estes como os mais representativos de saltos tecnológicos — , temos um ponto de partida para pensar o contexto futuro.

Para isso, vamos buscar sinais e tendências que estão despontando e podem direcionar o rumo da história nos próximos anos. Uma maneira simples e efetiva de realizar essa pesquisa é a partir dos próprios mecanismos de busca na Internet: digitado “futuro da(o) [tema que você escolheu]”, você certamente terá inúmeras entradas referenciando novidades, descobertas e fatos inusitados que estão surgindo no mundo — apenas tome cuidado para extrair essas informações de fontes confiáveis.

Alguns portais que utilizo como referência: Futurism, GeekWire, Institute for the Future, Interesting Engineering, Journal of Futures Studies, Medical Xpress, O Futuro das Coisas, Science Daily, TechCrunch, The Futures Centre.

Captura de sinais

  • e-VTOL: são veículos elétricos capazes de decolagens e pousos verticais, na sigla em inglês. Protótipos deste tipo têm ganhado espaço, tornando-se cada vez mais seguros, práticos e economicamente viáveis. Como exemplos, já temos: o ZEVA Aero, desenvolvido pela equipe da Washington State University, e inicialmente voltado para equipes de resgate e emergência; a XTURISMO Limited Edition, uma “motocicleta esportiva planadora” produzida pela start-up japonesa A.L.I Technologies; e os modelos CityHawk e Falcon XP, criados pela startup israelense Urban Aeronautics, capazes de decolar de e pousar em praticamente qualquer lugar, como ruas e topos de prédios (diferente dos demais VTOLs que, de forma geral, dependem de estruturas específicas);
  • balões espaciais: em junho deste ano, as viagens espaciais ganharam um novo modal — balões! Na ocasião, a empresa Space Perspective concluiu seu primeiro voo de testes e já planeja receber passageiros a partir de 2024. Por um valor bastante mais acessível que os foguetes de Elon Musk, Jeff Bezos e Richard Branson — US$ 125.000 — será possível subir a 30km de altura, com vista panorâmica para o planeta e o espaço;
  • elevador espacial: uma estrutura física conectando a superfície de nosso planeta à GEO, órbita geoestacionária da Terra, na sigla em inglês (entenda o conceito aqui). Embora a ideia em si não seja recente, os caminhos tecnológicos para viabilizá-la estão se tornando cada vez mais factíveis. Vantagens desta solução incluem: (1) a economia de recursos, promovendo acesso ao espaço de maneira muito mais barata, uma vez que o elevador estiver totalmente operante; (2) sustentabilidade, já que a quantidade de combustível necessária para lançar um foguete, bem como diversas outras etapas do processo, são extremamente nocivas ao meio ambiente. A concretização deste objetivo daria um novo rumo à exploração (e, por que não?, ao conceito de viagem) espacial. Sinal identificado neste link;
  • naves espaciais: baseadas nos projetos pioneiros da Space Shuttle (EUA) e da Buran (antiga URSS), várias empresas mundo afora estão trabalhando em projetos híbridos que permitiriam a um mesmo aparelho decolar nas condições da Terra e viajar pelo espaço: o DreamChaser, sendo desenvolvido pela Sierra Nevada Corporation, será um veículo não tripulado para transporte de carga — ele já completou algumas missões de teste, mas ainda não realizou “entregas” efetivas à estação espacial; em paralelo, a própria NASA criou um projeto batizado de X-37B, que já transportou cargas (cujo conteúdo não foi divulgado) pela órbita terrestre; outros países, como Reino Unido, Índia e China, também se juntaram a esse grupo seleto, com os projetos Skylon, RLV-TD e CSSHQ, respectivamente. Como se trata de iniciativas estratégicas, é bastante provável que os detalhes completos, objetivos e sucessos por trás dessas siglas não estejam totalmente declarados

Discussão: construindo um cenário futuro

Nas etapas anteriores, levantamos uma série de elementos que nos permitem um exercício de elucubração sobre o futuro. Neste exemplo da aviação, a combinação dos sinais acima — além de tantos outros que compuseram minha pesquisa, mas que suprimi a fim de não me alongar em demasia — apontam para as seguintes possibilidades:

  • tal como em relação aos veículos, existe uma tendência de que aviões e aeronaves adotem sistemas elétricos nos próximos anos. Não só pelo potencial de aumento de eficiência, mas a disparada de preço dos combustíveis fósseis e a pressão para readequar o setor em relação ao meio ambiente (ponto discutido na COP26) contam muito a favor dessa mudança. Desde 2019, diversos movimentos, sobretudo na Europa, têm provocado discussões e sugerido que as pessoas substituam voo curtos por viagens de trem — em números: o modal férreo emite até 19 vezes menos dióxido de carbono na atmosfera;
  • o potencial de drones fazendo entregas cotidianas em larga escala tem sido questionado por suas implicações um tanto… caóticas… em relação à poluição visual, risco de acidentes, danos ao ecossistema, praticidade e custos. No entanto, a abordagem desse tipo de veículo passou a ser aplicada em outras finalidades, mais específicas, e recentemente em relação ao transporte de pessoas — num primeiro momento, com enorme potencial para implementar soluções VTOL em contextos de emergência e resgate;
  • mais do que nunca, há uma grande diversidade de empresas — agências espaciais ligadas a governos e startups — explorando oportunidades no espaço. Com os avanços tecnológicos experimentados nos últimos anos e uma quantidade gigantesca de venture capital disponível para tais iniciativas, podemos esperar novos avanços no segmento, com números cada vez maiores de “turistas espaciais”. Como toda nova tecnologia, as primeiras expedições continuarão sendo proibitivamente caras — à maior parte da população, quero dizer; mas elas permitirão as iterações e aprimoramentos necessários para ganho de escala. (Pense na fortuna que as impressoras 3D custavam logo após seu lançamento e os US$ 100–500 que um equipamento doméstico, com boa funcionalidade, custa hoje)

Atualizando o framework

A partir dos pontos acima, podemos atualizar nosso framework da seguinte forma, plotando as projeções futuras:

Observe que nosso objetivo não é acertar a projeção, mas sim identificar caminhos que o tema escolhido está tomando, e como isso pode nos impactar — como indivíduo, sociedade ou organização.

Se este exercício foi realizado de maneira mais simples, um estudo para uma empresa ou um governo resultaria em um portfólio detalhado com referências, discussões, contextualizações de impacto (positivos e negativos em relação ao estado atual), além de um mapa de oportunidades —sem dúvida, um excelente ponto de partida para projetos de inovação, bem como para reflexões sobre nosso próprio papel em relação a essas transformações, e o que elas implicam para nós ou nosso negócio.

Adicionalmente, é possível transformar esse resultado em diferentes protótipos, capazes de oferecer uma experiência mais tangível de como seria viver nesse futuro — os chamados artefatos de futuro, que discutirei em outra ocasião. Como exemplos, já temos vídeos (curta metragens), objetos, roteiros de ficção científica e simuladores.

Resumindo as 5 etapas

  1. Esqueça as “previsões”;
  2. Olhe para trás primeiro, a fim de conseguir enxergar à frente com mais facilidade;
  3. Preste atenção aos sinais e tendências, ou seja, elementos do presente que apontam caminhos que o tema pode estar tomando;
  4. Discuta ou reflita como esses sinais e tendências podem se encaixar em uma escala temporal e promover os próximos passos [do objeto, serviço, região, contexto ou da própria humanidade como um todo];
  5. Elabore um mapa de oportunidades: como esse futuro está transformando o contexto em que vivemos (ou o ramo de atuação da empresa), e o que podemos fazer em relação a isso, seja tomando parte nessa evolução, apoiando desdobramentos desejados ou evitando complicações

Pensar o futuro deve ser um elemento rotineiro de nossas vidas. Além dos benefícios claros sobre criatividade, imaginação e ampliação de repertório, ele nos permite sair de um modo de respostas automáticas e passivas em relação a nós mesmos(as), nos impulsionando em direção ao verdadeiro protagonismo.

Notas

[1] A exceção, talvez, esteja na literatura, como em:

  • “A História sem fim”, de Michael Ende: nela, um ser ancestral, que vive dentro de um ovo e escreve sem cessar a história de Fantasia, desde o início, antecipa todos os eventos que vão ocorrer. Não fica claro se as coisas por lá acontecem porque ele escreve, ou se ele escreve porque vão acontecer de todo jeito; ou em
  • “Cem anos de solidão”, de García Márquez, a partir dos pergaminhos do velho Melquíades, que já traziam inscritos tanto a história de Macondo, quanto o destino dos Buendía: “O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas.”

Saiba mais em:

Gorbis, Marina. (2019). 5 principles for thinking like a Futurist. Educause Review, winter edition.

Hoffman, Paul. (2004). Asas da loucura: a extraordinária vida de Santos-Dumont. Objetiva.

Institute for the Future. Artifacts from the future — tangible, concrete, experiential.

Isaacson, Walter. (2017). Leonardo da Vinci. Intrínseca.

Johansen, Bob. (2017). Get there early — sensing the future to compete in the present. Berrett-Koehler Publishers

Spacca. (2005). Santô e os pais da aviação: a jornada de Santos Dumont e outros homens que queriam voar. Companhia das letras.

Toffler, Alvin. (1984). Future shock. Bantan, reissue.

United Nations. (2021). Conference of the Parties #26, special coverage.

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Written by Tiago Rodrigo

Product Manager | Futures Thinker | Behavioral & Data Science

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